Eis que o Cristal se parte

Em primeiro lugar, quero dizer que não sou estudiosa da vida de nenhum dos Doces Bárbaros. Apenas e simplesmente, tenho o privilégio e de estar com eles, de ser contemporânea deles nestes tempos de vida por aqui.

Sobre a doce bárbara que acabou de nos deixar, tenho maravilhosas lembranças. Lá pelos anos 1970/1980, era uma fiel seguidora de Elis Regina, de seu belo canto, de sua voz maravilhosa. Queria ser uma mulher como ela. Sair pelo mundo, desfraldar bandeiras.

Andava por volta dos meus trinta anos, quando surge um furacão. Uma baiana cheia de atitudes, num mundinho careta, que vivia sob a opressão do militarismo. À frente do seu tempo – Gal ousou a liberdade, nos cabelos, no vestir, na voz. Sim, na voz, correndo pelo palco e aos gritos, ela se manifestou por toda uma geração, a minha geração que tinha um grito entalado na garganta, com o Divino Maravilhoso de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Aquilo era uma libertação, num momento em que as vozes eram contidas. Eram vozes bossanovistas. A voz de Gal afinada juntou-se aos agudos agressivos ao estilo Janis Joplin. Nascia um novo tipo de mulher, talvez o pontapé para o que somos hoje. Feito Vaca Profana, mostrou os peitos pedindo para o Brasil mostrar a cara. Pra que mais empoderamento? Essas meninas que aí estão, do funk ao sertanejo, têm muito a agradecer à doce bárbara baby profana Gal. Poverinas!

Não tenho absoluta certeza, mas lembro de estar em Fortaleza, no Ginásio Paulo Sarasete , entre 1971/1972, se a memória não me engana, eu, menina distante do eixo Rio-São Paulo, onde tudo acontecia, meio carcará, querendo pegar, matar e comer, levo um susto danado. Vejo Gal Fa-tal. Violão sustentado entre as pernas abertas, voz rascante, uma mulher deslumbrante. Meu coração parecia um tambor, meu cérebro tentava entender o que estava acontecendo. Não estava preparada para ver aquilo. O ginásio tremia. As pessoas enlouqueciam. Tentavam subir no palco. Uma verdadeira comoção.

                                                                            

Sobre o início

Nós por exemplo é o princípio de tudo – um encontro de artistas que viriam a se consolidar no cenário musical brasileiro. Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal (ainda Maria da Graça), Tom Zé sob a direção de Álvaro Guimarães, o Alvinho, que tive o prazer de receber em minha casa, na Martinho Prado, em Sampa.

Tudo aconteceu no palco do teatro Vila Velha, em 22 de agosto de 1964. A intenção era apresentar jovens compositores, cantores e instrumentistas que pretendiam renovar a música popular brasileira. Uma prova de que tudo isso era, mesmo, uma revolução é que no dia seguinte, era o assunto das conversas nas faculdades e bares da cidade.

Sol Negro, uma canção, um lamento, composto por Caetano para as vozes contrastantes de Bethânia e Gal, foi o ponto alto.

Na minha voz trago a noite e o mar
O canto é a luz de um sol negro e dor
É o amor que morreu na noite do mar

(Virgínia Rodrigues fez uma interpretação divina de Sol Negro. Viva Caetano, um ser milhões de anos luz à frente de seu tempo.)

Uma espécie de Semana da Arte Moderna Musical. Talvez, nem eles tivessem consciência, mas o País ganhava tons e cores que viriam transformar tudo o que consumíamos. E o movimento tropicalista transformou, incomodou e nos deu o que ainda hoje é moderno, mesmo que muita gente pense que está inovando. Não, não.

Gal é a voz da contracultura desde 1969, quando são exilados Caetano e Gil, em Londres. Depois de tudo isso, só nos resta amenizar a dor desta perda com o que nos foi legado nas muitas mídias – o Cristal que nos foi presenteado durante todo o percurso de Gal – a Fatal, A Vaca Profana, A Baby, a Voz que reluziu e reluz na nossa MPB.

Mazeh Moreira

Jornalista


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