Jane Austen

Depois de Shakespeare, Jane Austen; se há alguma verdade universalmente reconhecida, é esta.

 

A amplitude dessa verdade, confesso, me assusta. Não apenas acadêmicos e leigos, homens e mulheres, adolescentes e crianças[1], puristas e fãs de filmes e séries de época que jamais abriram um dos livros; também supremacistas brancos que elegeram Austen como um exemplo de feminilidade, e também as sufragistas que carregaram cartazes com o nome da autora como exemplo de mulher revolucionária.

 

Jane Austen é tudo, para todos. Entretanto, no ano 2022, a Internet coletivamente parece concordar sobre um único assunto: a nova adaptação de Persuasion (Netflix) é ofensivamente terrível, horrorosa, um insulto aos milhares de fãs, Jane Austen está se revirando em seu túmulo!

 

Como fã e pessoa curiosa, fiquei intrigada. Esse discurso sobre o corpo reanimado de Austen retorcendo-se não é novo – foi a piada mais contada de 2009, quando foi lançado o livro Orgulho e Preconceito e Zumbis, e de novo em 2016, quando o filme de mesmo nome saiu. A Internet parece adorar um pânico moral e tem pretensões heroicas de defender a honra da autora.

 

Apesar de tanto pânico, tanto heroísmo, e apesar de morta há mais de 200 anos, Jane Austen permanece muito viva, e muito bem, obrigada, até hoje, e possivelmente sempre. Não faltam produções artísticas baseadas em sua obra – filmes, séries de televisão, streaming, séries online, livros, textos online, memes etc. Mais do que apenas reproduzir
histórias, personagens e temas, essas produções artísticas são o sangue vital que mantém vivo o interesse em Austen. Uma anedota exemplar, se me permitem:

 

Em 2019 ingressei como professora de inglês na rede municipal de minha cidade, no interior de São Paulo – 130mil habitantes em 150mil km2 e zero livrarias; a country village, um ambiente de fofoca, classes sociais demarcadas e falta de sensibilidade, com algumas pérolas perdidas por aí. (Soa familiar, leitores de Austen?) Este ano tive a seguinte conversa com uma aluna de 7º ano:

 

L.:    Professora, você assistiu Persuasion?

Eu:  Claro. O que você achou?

L.:   Gostei muito. É super divertido.

Eu:  Sabia que tem um livro também? (que é lindo, mas não sei se “divertido” é uma palavra que eu usaria para descrevê-lo)

L.:   Ah, eu achei mesmo com cara de fanfic.

 

Estonteei. Isso mesmo, L., isso mesmo – tem “cara de fanfic” porque é um fanfic, e um genialíssimo. O início do filme traz o título e o seguinte subtítulo: “Baseado na obra de Jane Austen”, e acho que, depois de assistir o filme várias vezes, “a obra” não se refere somente ao Persuasion publicado postumamente em 1818.

 

Quando pensamos na voz autoral de Austen, em quem estamos pensando? A biógrafa Claire Tomalin (1999:254)
nota que Walter Scott talvez tenha sido o primeiro a confundir o discurso indireto livre tão bem trabalhado por uma autora profissional com a voz de suas protagonistas de 20 anos. O estilo de Austen que reconhecemos mais
distintamente é jovem, animado, irônico, perspicaz – é o estilo de Elinor em Razão e Sensibilidade (1811), Elizabeth em Orgulho e Preconceito (1813) e de Emma em Emma (1815), mas certamente não é a voz romântica e cheia de arrependimentos de Anne Eliot em Persuasion (1818). O que o filme de 2022 faz que tanto ofendeu legiões de fãs dos livros é adotar a voz de outros romances de Austen para recontar seu último romance – uma liberdade de uso do material adaptado muito pouco comum em “adaptações”, mas muito comum em na prática de fanfiction.

 

Para quem nunca teve a felicidade de passar noites em claro em um certo site popularmente chamado de
AO3, fanfiction é uma obra transformativa feita por fãs e para fãs, e é uma prática tão antiga quanto continuar a história da Chapeuzinho Vermelho porque sua sobrinha ainda não caiu no sono e você precisa enrolar mais 15 minutos. Há um ponto de contenção aqui – primeiro porque o próprio AO3[2] reconhece fanfiction como texto escrito, e segundo porque Persuasion (2022) reconta o romance original de Austen, a maioria dos pontos da trama estão presentes. Por que um fanfic e não uma adaptação?

 

Adaptação é outra prática mais antiga que mudar o final de Chapeuzinho porque seu sobrinho começou a chorar de dó do lobo, ou de fazer um teatro de fantoches da história até então transmitida oralmente, ou uma peça teatral de um romance, ou uma série em streaming de uma HQ etc. Esse reconhecimento ou relação entre adaptação e obra adaptada, escreve Linda Hutcheon (2006) ao longo de seu livro A theory of adaptation, é parte do prazer que temos em uma adaptação. Há um contrato social/artístico entre a obra e o público já conhecedor da obra adaptada, uma negociação constante entre ater-se à obra adaptada – fidelidade, o zumbi de guarda que se revira no túmulo quando esta falta – e o criar sobre ela. Fanfics, por outro lado, rasgam esse contrato em favor de uma relação mais direta com o público – alguém mais acha Anne Eliot muito quadrada? (Eu!) Por que não a mostrar reagindo a sua perda como alguém de nossos dias, com garrafas de vinho e chorando no banho? (Ótima ideia!)

 

As distinções não são sempre claras, ou precisas, ou ponto pacífico entre estudiosos, fãs e/ou artistas. Se um filme pode ser fanfic, o que dizer de livros publicados tradicionalmente como Longbourn (2013), de Jo Baker, que usam a trama e personagens de Austen, mas do ponto de vista dos empregados? Ou de criações transformativas como o vlog The Lizzie Bennet Diaries? O filme Orgulho Preconceito e Zumbis (2016) traz mais referências à outras adaptações de Orgulho e Preconceito e ao próprio romance do que o livro de Seth Grahame-Smith; seria um fanfic do universo cinemático Jane Austen, ou uma adaptação do livro Orgulho, Preconceito e Zumbis (2009)?

 

O mais importante – e o que quero discutir no curso Orgulho e Preconceito: Adaptação e Fanfiction – a resposta dessas perguntas muda a sua apreciação por cada obra?

 

Isabela Sabbatini.

Agosto, 2022.


[1] Minha adaptação preferida em forma de livro é “Lizzy Bennet’s Diary”, de
Marcia Williams,

[2] Disponível em: <https://archiveofourown.org/faq/about-the-archive?language_id=en>

ISABELA SABBATINI

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